Gostava disto e daquilo.

Gostava de ser para ti a solução, nunca o problema
Saberes que vale a pena, sem alma pequena
Gostava de conseguir mostrar tudo aquilo que penso
Gostava de te arrancar das garras de um dia tenso
Gostava de te viver esse dia sem fazer uma cena

Gostava de ter o teu sorriso no retrovisor do meu carro
Gostava de ter o teu sorriso sempre comigo
Gostava de ser companheiro, namorado, amigo
Gostava que só não conseguisse ver o teu sorriso enquanto te beijo

Continue a ler


Isto é uma história com Franceses.

Era uma vez um país onde todos comiam baguetes e croissants. Todos comiam isso e adoravam!! O reino crescia dividido entre padarias, mimos com camisolas às riscas, com boinas sexys e jovens com vestidos curtinhos, mas de alta costura, a passear pela capital do reino em bicicletas que tinham roubado aos avós. Estava tudo bem.

O reino crescia e estava de bem com a vida. Toda as manhãs as crianças vinham à rua cantar com os pássaros e à noite as mães dessas crianças eram malhadas insanamente. Muitas vezes por alguém que não era o pai da criança correspondente à amazona de Eiffel, mas o importante era que todos estivessem felizes. Alguns eram felizes com um bom vinho no copo, outro com uma garrafa de champanhe enfiada numa cavidade corporal. Mas o importante é que a felicidade estava lá!

Muitas pessoas diferentes faziam parte do reino. Pessoas que cantavam músicas tristes; pessoas que cantavam músicas alegres; pessoas que brincavam com touros; amarelos; castanhos… Era quase uma coligação de esquerda em ponto grande.

Até que um dia, no reino onde tudo estava bem chegou uma pessoa nova. O senhor não tinha cara. Não tinha nome, nem morada, nem conta no Facebook. O senhor não gostava do queijo que todos os outros veneravam. O senhor era diferente. O senhor não falava com ninguém, mas dizia ter muitos amigos. Os amigos do senhor não falavam com ninguém também, eram um grupo fechado de pessoas.

O problema desse senhor novo que tinha chegado com o seu grupo? Eram castanhos… Era a única coisa que tinham em comum com aqueles que já lá estavam. A cor. Bem, à falta de melhor, a cor serve como um elemento identificativo e diferencial certo?

No reino havia medo, não dos novos e maus… Não dos feios… Havia medo de todos os castanhos. Nesse dia todos perceberam que se chegar um senhor feio que cante uma música triste, um senhor feio que cante uma música alegre, um senhor feio que brinque com um touro, um amarelou ou outro castanho; todos se iam chatear. Embora antes estivesse tudo bem.

O reino dorme todas as noites com medo de que alguém feio apareça. Os feios alimentam-se desse medo. Um dia ninguém vai cantar músicas tristes ou alegres, ninguém vai brincar animais e todos vão esconder a própria cor para que ninguém ache que eles são feios.

IMG_6661


Apenas porque sim


Apenas porque sim.

Hoje eu choro apenas porque sim, não pelo começo e muito menos pelo fim. Não choro por ti nem por mim, choro apenas porque sim. Pelo menos penso que esse é o único motivo, quer seja negativo ou positivo, que posso encontrar para eu conseguir pensar que ainda estou vivo e não que sou apenas um definitivo resto de homem, amor e dor a passear. Hoje até posso ficar apenas a chorar. Choro à saudade e à contemplação da fragilidade de qualquer paixão que possamos sentir ou criar. Hoje nem preferia rir a chorar.

Se preferia partir a ficar? Depende de quem perguntar. Se me perguntares o que preferia fazer agora, dizia que mais valia ir embora, porque não preciso de mais alguém a dizer ‘quero-te ver bem’.

Preciso de ti. Agora.Preciso ou precisei ou precisarei?

Não sei. Nem valem a pena pensar. De nada vale procurar um sentimento para durar, quando não o podes escoar para nenhum coração. Porquê? Aparente porque não. Estas palavras não são minhas, por isso se tiveres alguma questão aproxima-te no espelho e pode ser que lá, então, tenhas uma espécie de revelação. Como uma fotografia de um dia de Verão, ou uma noite com luzes de Natal, numa rua da capital, onde me levavas pela mão.

Sim, eu não me esqueci. Nem de nada, nem de ti.

Não me esqueci de como começou, do que aconteceu enquanto durou e da parte de mim que morreu quando acabou. Quando TU chegaste ao fim. Quando TU pediste o fim.
Eu lembro-me de tudo isso e é por isso que prefiro guardar tudo isso para mim. Digo-te que eu hoje choro, mas não choro só porque sim.

.


Encontrei pretensão.

Perdi o autocarro.

Fiquei sentado, parado e sem reação
Fiquei a ver a tristeza na cara de quem passa
Falsa cassa alegre no rosto desta raça
Sem graça
Que não diz graça
Que grita desgraça
Perdi-me na multidão.

Sinto-me por vezes um real histrião
De adaga afiada mas nunca usada
De risada fechada e profanada,
Adiada e esquecida. Amaldiçoada.
A maldição sobre o riso é pretensão.

Talvez sim. Talvez não.
Mas tudo me lembra quão tristes fomos.
Tudo me lembro quão tristes somos.
Sou tão pretensioso porque todos os outros
De outras formas
Também o são.

Perdi o autocarro.
Encontrei pretensão.

a.estrada


Gregório…

Gregório, senta-te e pede um bagaço.
Um balão pequeno meio aquecido.
Uma fuga deste mundo que querias esquecido.
Um demónio que te acolhe, como um filho, no regaço.

Gregório, dá-me um abraço…

Gregório, fica comigo um pouco mais.
Não partas já, senta-te um bocado.
Até podes nem falar, mas fica ao meu lado.
Não te afogues nesse copo.
Nesse cais.

Gregório, sede jamais…

Sozinho ou acompanhado, beber é que importa!
És um galifão destemido, príncipe de Alfama.
Na realidade…
Um leitão deprimido, sozinho numa cama,
a beber de uma paixão já morta…

mulher-bebida-alcool-escuro


Ciúme.

ci·ú·me

substantivo masculino

1. Receio ou despeito de certos afectos alheios não serem exclusivamente para nós.

2. Inveja.

3. Receio.

slide15
“ciúmes”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013

Tu estás.

É complicado abandonar aquilo que nós conhecemos como parte da nossa vida.

Mais do que um passatempo, um trabalho ou uma profissão, algo que conhecemos como forma de encarar o dia-a-dia e motivo de grande parte daquilo que somos, o ser. É complicado olhar à nossa volta e perceber que mesmo depois de todas as voltas que demos, todas as vezes que nos levantámos antes da contagem final, todas as vezes que ficámos tão cansados que já dávamos por nós a correr de boca aberta e de olhos fechados, todas as vezes que o suor dividia a nossa cara com lágrimas, felizes e tristes como é normal numa relação a dois, todos os momentos que pensámos que não iriam acabar e seriam apenas um passo em frente para algo melhor, perceber que tudo isso não é nada… Perceber que tudo isso já não é nem poderá ser mais.

É apenas isto que sobra no fim de tudo aquilo que já vivemos. Apenas ficamos com as lembranças e sonhos por realizar. Não é grande coisa para ficar com, certo? Mas olhar à volta e perceber que os nossos pares à muito que largaram essas lides e que fomos só nós… Quantas vezes só nós… a manter de pé uma ponte de Marco Pólo que não passava, na realidade, de um conjunto de vigas onde passeávamos sem saber que mais tarde ou mais cedo o piso iria desaparecer e cairíamos na triste e humilde realidade de não sermos mais do que algo de que os nossos próprios sonhos se envergonhariam.

Tantas histórias foram ficando ao longo do tempo que nós próprios nos tornámos em histórias, mitos e lendas.

Fomos criando algo maior que nós onde nos apoiávamos para parecer mais altos, quando na realidade os nossos pés estavão num buraco que não findava e ficava cada vez mais fundo. Acreditámos uns nos outros quando dizíamos que iríamos fazer história, capazes de mudar tudo.

Iríamos mudar o mundo.

Iríamos dominar o mundo.

O mundo aplaudiria os nossos egos gigantes que brilhavam no alto, mas não esquecer, que estavam apenas apoiados em algo falso. Os aplausos? Esses podem ter chegado, mas não estávamos no alto para eles, apenas num buraco para tudo. Num buraco escuro e solitário onde era fácil acreditar que éramos intocáveis no seio daquilo por que vivíamos.

O buraco foi esvaziando e hoje em dia está ainda mais fundo, ainda mais escuro e totalmente solitário. Com marcas nas paredes das pessoas que subiram e partiram rumo a algo mais. A outras verdadeiras alturas ou a mais fundos e imundos buracos.

Mas não tu.

Tu ainda lá estás.

Estás escuro, no fundo e totalmente solitário.

Mas estás.

Tu estás.

samurai1uz91


O que é rir?

O que é a comédia?
O que é estar em cima do palco?
O que é fazer rir?
O que é ferir as emoções?
O que é ferir a preparações?
O que é preferir essas ações?
O que é dizer não ao choro?
O que é preferir sorrir?
O que é preferir só rir?
E se preferir sorrir, para ferir ou só rir?
O que é rir?

THE_JOKER


Idolatria.

Bem, mas o que podemos nós dizer
Numa altura de coração condescendente
Que busca nova emoções laboriosamente
Uma fuga, claro, mesmo sem saber

O que posso eu bem fazer?
Se tudo o que quero não passa de desvario
Se preciso de ti para encher o vazio
Se estou cheio de dúvidas por responder

Respostas eminentes, certamente
Mas com um travo de sapiência
O adiar temeroso de pacifica violência
Um sorriso falso, enganador e inteligente

E se à noite me recordo de ti com nostalgia
Tento convencer-me que é apenas um devaneio
Que sou eu a seguir em frente mas com mais um rodeio
Mas sou eu a pensar em ti.

Idolatria

green-with-limelight


De nada vale sonhar.

Espero nunca mais beber da saudade
Não depositar horas em cima do balcão
Não desperdiçar horas deitado no chão
Voltar a sonhar, despido de sagacidade

Que a saudade não volte mais
Que fique apenas a vontade
Que fique apenas a verdade
Que seja verdadeiro quando dizes que não vais mais
Verdade que ficas.
Que ficas.
Que ficarás…

Sonhar é bom mas mata-nos devagar…
Quando percebemos como tudo é na realidade
Quando percebemos que bebemos da saudade
Quando percebemos que todo o amor acaba em maldade
É quando percebemos que de nada vale sonhar.

sonhar


Ela caça outro.

Tem sempre de estar tudo bem
Até mesmo quando nos vão à carteira
Até mesmo quando nos apanham de maneira
Que fiquemos à beira dum vai e vem

No prato de jantar não tem lagosta
Ela gosta mas o gosto eleva o gasto
O gajo não pode gastar, embora casto
E vende a alma a qualquer monstra

Ela, por sua vez, mostra que se importa
E pede para importar o presente para lhe dar
Ele bate com a porta e parte por hora
Agora, a gaja gasta o que ele foi deixar

Ele trabalha no duro e ela dá duro no dinheiro do trabalho
Ele chega a casa cansado
Ela sai de casa no momento
Ele aquece no micro-ondas o assado
Ela atira o dinheiro dele ao vento

Ele trabalha, Ela gasta
Ela traia, Ele gosta
Ele não sabe, Ela esconde
Ele descobre, Ela mata
Ela finge o choro
Ela caça outro.


Perfilados da Vontade – NOF

Perfilados da vontade, nos erguemos
Investindo ao passado como loucura
Decididos com pontapés, revolução e acenos
As personalidades, origem de uma cultura

Combatentes sem necessidade de combate
Perfilados da vontade combatemos
Preparados para executar o abate
Para sermos os melhores, seremos.

Perfilados da vontade, está de pé
É altura de sair do banco
É altura de remar contra a maré

É hora de nos esforçarmos tanto
Basta na revolução fantástica ter fé
Porque o futuro é branco

 

tonight-we-dine-in-hell

 

Inspirado em:

Perfilados De Medo

José Mário Branco

Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
E a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido…


O medo de Amar.

Tentei amar, mas fiquei com medo.
Tentei acreditar, mas fiquei com medo.
Tentei suportar, aguentar e passar
Mas fiquei com medo.

Tentei não duvidar, mas fiquei com medo.
Tentei não questionar, mas fiquei com medo.
Tentei não duvidar, interrogar e questionar
Mas fiquei com medo.

Tentei não me expressar, mas fiquei com medo.
Tentei-me acostumar, mas fiquei com medo.
Tentei não desanimar, mas era demasiado medo.
Fiquei com medo.

Tentei, mas já não tento.
Agora, apenas tenho medo.

medo

Inspirado em:

Eu quis amar, mas tive medo
E quis salvar meu coração
Mas o amor sabe um segredo
O medo pode matar o seu coração
(…)
Eu nunca fiz coisa tão certa
Entrei pra escola do perdão
A minha casa vive aberta
Abri todas as portas do coração
(…)
Eu sempre tive uma certeza
Que só me deu desilusão
É que o amor é uma tristeza
Muita mágoa demais para um coração…
Tom Jobim


Rui Zink “O bicho da escrita”

Não vou escrever nada mais. Vou apenas deixar este incrível texto de Rui Zink.
Lisboa, 16 de Junho de 1961
Escritor e professor universitário português.

Rui Zink “O bicho da escrita”

Todos os meus amigos escrevem. Excelente. Todos os meus amigos gostam de escrever. Formidável. Eu próprio não desgosto de escrever, embora já não o faça. Escrever é bom. Escrever as palavras. Escrever as coisas. Escrever o mundo. O mundo dentro de nós. E o mundo fora de nós. Todos os meus amigos escrevem. Todos os meus amigos são escritores. Todos os meus amigos fazem livros.

E o pior é que não são só os meus amigos. As outras pessoas também. Os meus vizinhos escrevem – poemas. O senhor que entregava as cartas também escreve – livros de viagens, acho. A empregada do café escreve romances policiais, o funcionário do banco escreve novelas de amor, o dono da mercearia escreve – romances históricos. A minha mãe escreve ficção científica, os meus irmãos escrevem banda desenhada, até os nossos primos mais afastados escrevem – acho que best-sellers, mas não tenho a certeza, podem ser apenas ensaios de hermenêutica neo-visigótica.

Só o meu pai não escreve, porque já morreu. Se estivesse vivo escrevia de certeza, e até sei o quê – novelas picarescas. No hospital, todos os doentes escrevem e os médicos que lhes prescrevem as receitas também escrevem. Da literatura inclusa à literatura médica, nem mesmos os enfermeiros, os maqueiros, os polícias de piquete ou os funcionários do balcão de atendimento deixam de escrever.

Esta situação é preocupante. O governo já anunciou que irá tomar medidas. Não é de excluir, admitiu o porta-voz do governo, que seja declarado o estado de emergência. O porta-voz do governo já não fala – ele próprio foi atingido pela doença. Eu por acaso li o que escreveu, mas não sei se ele estava a falar a sério – a escrever a sério – ou se era apenas mais um capítulo da sua nova (e interessantíssima) ficção política. Aliás, devo ter sido o único que o leu ou, vá lá, um dos poucos. Porque deve haver mais como eu, quero dizer, tenho de partir desse princípio, não? Convém não confundir o facto de não conhecer mais ninguém como eu com a assunção, quiçá precipitada, de não haver mais ninguém como eu.

A doença é altamente contagiante. Faz o Ebola parecer um vírus de brinquedo, tal a velocidade a que se reproduz e transmite. O período de incubação dura entre três a seis horas, findo o qual a vítima, até então uma pessoa normal, se torna abruptamente num escritor. Os hospitais estão a rebentar pelas costuras, a abarrotar de gente obcecada pela sua dose de papel e caneta. E cada vez têm de escrever mais, de aumentar a dose, porque cada vez têm mais e mais ideias, mais e mais amor à literatura, às belas palavras, à poesia secreta que se esconde por trás das belas palavras – mesmo das feias, dizem os casos terminais.

Os cientistas ainda não conseguiram isolar o vírus, ou encontrar um antídoto, ou mesmo simplesmente identificar a origem da doença, ou explicar-lhe a natureza, porque… pois, isso mesmo, estão todos ocupados a escrever. Há pessoas que já definharam e se consumiram por inanição. Nada de espantar, é até bastante lógico, embora escabroso: escrevem, não comem, morrem.

Acidentes ocorrem em massa. Os despistes são mais que muitos. Por toda a cidade se ouvem explosões. Os taxistas vão muito bem a meter a terceira, lembram-se de uma frase, põem-se a escrever, largam o volante e… É terrível.

Até as crianças se põem a escrever. As que ainda não sabem o alfabeto inventam um, ou garatujam bonecos simbólicos, e inventam histórias, histórias, histórias. Bebés de um ano, que digo?, de meses, pegam numa caneta, num lápis, e mexem as mãozitas fechadas para a frente e para trás, com uma habilidade inaudita. Claro que acabam por rasgar o papel e rabiscar o chão todo para além das esparsas fronteiras da folha branca, mas não se importam com isso, continuam sem parar a escrever os símbolos do mundo. E os pais também não ligam, porque eles próprios estão ocupados a escrever, e o que é um chão todo rabiscado em comparação com um brilhante conto infantil onde uma princesa ajuda um cavaleiro a não se perder na floresta negra onde vai combater um dragão maligno com a simples dádiva de um dos seus belos cabelos louros? Hum?

Nunca se viu nada assim. A situação é grave, toma proporções calamitosas e não há sinais de se vir a atenuar. Gostaria de o dizer de outra maneira, mas não há outra maneira de o dizer: o mundo corre o risco de sucumbir ao peso de tantos romances, contos, ensaios, novelas, poemas. Os poemas, esses então, são mais que as mães. Odes, elegias, éclogas, adágios, quadras, redondilhas, dísticos, ditirambos, alexandrinos, pastorais, quintanilhas, décimas, duodécimas, litotes, sonetos, sonetinos, sonatinas.

Não estou a ser alarmista. A Terra já saiu ligeiramente da órbita. E o número de escritores e poetas não pára de aumentar de dia para dia. E o número de palavras escritas. E de frases inovadoras: curtas, longas, frases de uma só palavra (“Ele. Disse. Para. Ela.”), frases sem vírgulas durante duzentas páginas (“Não vale a pena dar aqui um exemplo teria de ocupar duzentas páginas mas esta pequena amostra talvez já sirva para dar uma ideia ou então o melhor ainda é pelo menos gastar mais meia linha com esta frase idiota de modo a que a ideia que estava a tentar ser dada seja mais clara e convincente e acho que agora já chega o exemplo já está dado acho”), torniquetes e arrebiotes de sintaxe que uma pessoa não julgaria possíveis ou razoáveis.

Uma pessoa pergunta-se sempre: “Que mais irão eles inventar?”. Ou “Será que ainda há algo para inventar?” Pelo menos era o que me perguntava antes – antes da epidemia. Pois se há coisa que a doença veio provar é que as possibilidades de invenção – e as capacidades humanas de inventar – são inesgotáveis. É triste, mas é a dura realidade: a imaginação humana está em contínua expansão, como o universo. A imaginação humana é como um buraco negro, tudo consome, tudo devora. E a humanidade corre o risco de se extinguir por causa disso. Por excesso de imaginação, por excesso de talento, por excesso de criatividade.

Com franqueza, há um limite para tanta produção artística e cultural. Ou devia haver, porque, pelos vistos, não há.

Ainda por cima de qualidade. Sim, porque, quem sou eu para o negar?, as pessoas não só escrevem como ainda por cima o que escrevem é bom, é interessante, é válido, merece ser lido, tem estilo pessoal, vem ocupar um espaço no espaço da literatura que estava por ocupar porque não sabia, antes de ser ocupado, que esse espaço existia e era ocupável. Cada pessoa cria o seu nicho com a mesma avidez e a mesma precisão milimétrica com que a andorinha constrói o seu ninho. E, se é certo que uma andorinha não faz a primavera nem um escritor chega para fazer a literatura, muitas andorinhas juntas, milhares, milhões, biliões de andorinhas juntas chegam e sobram para fazer à vontade uma caterva inteira de primaveras: sobretudo daquelas que trazem como brinde gratuito uma senhora porção de verões, outonos e, claro, invernos. Esse é que é o busílis.

E esse é também o génio do vírus. Põe as pessoas a escrever – e a escrever bem. Se lhes desse a vontade, mas não o talento, ainda era como o outro. Um médico que descobre, ao fim de centenas de páginas, que se limitou a parodiar Fernando Namora, pode ainda voltar a exercer medicina, a fazer aquilo para que tem realmente jeito. Uma advogada que se dê conta de que nem todas podemos ser Agatha Christie ainda pode ser útil aos seus clientes. Mas que fazer com um obstetra que faz páginas belíssimas? E com uma causídica que nos faz ficar na dúvida sobre quem é o criminoso até ao derradeiro parágrafo? Hum? É triste. É trágico. É insuportável. Histórias bem arquitectadas, com indiscutível mestria, personagens credíveis, textos que compreendem a essência da coisa literária: que não é nas palavras, mas para além das palavras, que se encontra a beleza do texto.

*

A princípio até houve uma euforia colectiva, os jornais falavam de um “novo nascimento”, os críticos de um “momento ímpar” da nossa literatura, os poderes públicos da pujança de uma “nova geração de criadores”. Só depois começaram os pequenos indícios de que poderia haver algo de errado neste surto de talento, mas ninguém conseguiu – ou quis – ver o que estava a acontecer. E, verdade seja dita, por essa altura também já muita gente estava contaminada e começara a escrever, primeiro com alguma hesitação e sentido de responsabilidade, depois cada vez mais furiosamente – até ao romance final.

Agora?Agora o mundo é um lugar lúgubre, são tempos enegrecidos, estes. E o pior é quando chegar o inverno. No verão ninguém dá por falta das formigas, apenas das cigarras. Mas quando chega o inverno… Os mercados estão vazios, a distribuição de pão e outros alimentos básicos não é feita, o próprio pão não é feito. As lojas estão vazias, abertas, escancaradas para a rua, mas vazias. Sem ninguém a guardá-las, sem ninguém nas caixas, sem ninguém para acender ou apagar as luzes. Nos hipermercados, uma pessoa pode levar para casa tudo o que quiser nos carrinhos metálicos. Mas, se não tiver uma moeda, não pode levar nem um carrinho porque não há onde trocar a moeda.

Há, claro, coisa boas. As televisões deixaram de funcionar. Acabaram-se as telenovelas, as “novelas da vida real”, e a ironia é que se acabaram precisamente na altura em que se multiplicou por mil o número de autores de telenovelas. Só que já não há ninguém para as filmar: actores, operadores de câmara, maquilhadoras, realizadores, produtoras, assistentes de realização, equipas de luminotecnia, guarda-roupa, pós-produção e montagem, estão todos cada um para seu lado a escrever o livro das suas vidas. Também, seria preciso dizê-lo?, já não há boletim meteorológico. Receio que aconteça o pior se os barcos forem para o mar sem saber que mau tempo os espera. Mas imediatamente me dou conta da parvoíce que acabo de dizer. Já não há niguém para se fazer ao mar, os pescadores abandonaram as redes, os arpões, os convés, os iscos, e estão todos de papel e caneta a descrever relatos de naufrágios, aventuras com peixes de nome impronunciáveis, palimpsestos de Moby Dick, versões melhoradas e adaptadas aos tempos modernos da noveleta de Hemingway, O Velho e o Mar.

Há bocado disse que eu devia ser o único a ter lido o último comunicado do governo. Depois corrigi e disse que não, talvez não seja o único. Talvez não seja, de facto, mas até agora não sei onde estarão os outros, esses outros que ainda não foram atingidos por esta loucura colectiva, nem se serão como eu ou se terão eles mesmos sofrido alguma mutação. Não sei por que motivo fiquei imune ao vírus. Terá a ver com o meu AND, o meu código genético, com o meu tipo de sangue, com a insuficiência (ou o excesso) de melanina nos meus poros? Faltam-me os conhecimentos científicos para o poder dizer sem correr o risco, impróprio sobretudo nesta ocasião, de cair na ficção científica ou no delirio fantasista disfarçado de saber objectivado.

Se não sou a única pessoa no mundo que, neste momento, neste talvez derradeiro momento da humanidade, lê o que os outros escrevem, onde estão os meus camaradas de armas? Será possível reunirmo-nos e criar um bastião de resistência, uma organização underground que lute contra a epidemia e, através do estudo, da leitura, da experimentação teórico-prática, encontre uma solução para devolver a saúde aos homens e pôr de novo o mundo a funcionar? Não sei. Confesso que não tenho muita esperança.

Eu sou um leitor. Sei o que sou: leio o que outros escrevem. Faço-o até compulsivamente. De manhã, ao pequeno-almoço, mesmo que não tenha um jornal pela frente, as páginas com a tinta ainda fresca aflorando a chávena de café, os meus olhos percorrem instintivamente a mesa, à procura de palavras, letras, frases para ler: “Corn Flakes”, “rico em vitaminas e minerais”, “Loja 18 – Rua Camilo Castelo Branco, 15-A”, “Planta – margarina vegetal, 250 gramas”… Depois, à medida que o dia avança, vou lendo tudo: todos os jornais, todos os anúncios, todos os números de todas as portas, todos os nomes de todos os médicos na placa da policlínica que fica na rua pela qual perpasso todos os dias. Leio todos os romances que me passam pela frente, leio todos os ensaios que consigo ler, todos os poemas que me passam para a mão quando, à hora do almoço, vou comer um mini-prato ao balcão da pastelaria do bairro onde fica o meu emprego, no qual tenho por função ler todos os documentos que colocam em cima da minha secretária para esse mesmo devido efeito, que é eu lê-los.

É verdade, não sei por que milagre fiquei imune ao vírus. E o engraçado é que nem sempre fui assim. Em jovem, eu próprio tentei escrever. Pode-se lá viver sem ter tentado escrever! Embora nessa altura, devo dizê-lo, houvesse muito menos gente a escrever. Eram outros tempos, havia muito analfabetismo, era uma vida de trabalho. Depois, descobri que preferia ler. Mas antes, confesso, eu próprio tinha a mania de escrever. Nada especial, acho: uns poemetos, um ou outro conto, dois ou três esboços de diálogos para teatro. Mas não vale a pena escondê-lo, eu tinha a mania de que sabia escrever.

Talvez por isso eu tenha ficado imune, se calhar o meu pecadilho de juventude – queria ser escritor! – funcionou como vacina. Isso protegeu-me, até à data, admito, mas não sei até que ponto isto é uma bênção ou uma maldição. Sou um leitor num mundo de escritores, e isso faz-me sentir muito sozinho. Porque todos escrevem – mas ninguém lê o que os outros escrevem. Ninguém senão eu. Não têm tempo. Estão tão absortos a contar a sua história, a conceber o seu monumento de imaginação e arte, que não têm tempo para ler. Nem é uma questão de ter tempo, é que, simplesmente, já não conseguem. Não conseguem ler. E, qualquer dia, já não sabem ler. As línguas assim vão acabar, ainda antes mesmo do mundo, porque cada um vai cada vez mais e mais escrever na sua própria língua, no seu código muito pessoal, esquecendo-se de que a comunicação tem dois sentidos e que, para se ser compreendido, é preciso partilhar os elementos para essa compreensão. Não lêem. Só escrevem. Morrem. Tal é a potência, a perversão demente do vírus.

*

E você? Não sei se existe, caro/a colega de sobrevivência neste mundo em colapso. Se ler isto, é porque ainda existe, e então fica a saber que, algures no planeta, talvez mesmo na sua cidade, há alguém que partilha os seus medos, angústias, mas também as suas esperanças. E talvez possamos encontrar-nos, era mesmo bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto, para unir esforços, e procurar outros como nós: leitores imunes ao bicho da escrita. Bem sei que a sua primeira reacção talvez seja pensar: “Este tipo está a tentar enrolar-me. Ele próprio é um escritor, não um leitor de verdade. Ele próprio foi contaminado e está a tentar fazer-me crer que não, provavelmente com algum fim pouco honesto.”

Está no seu inteiro direito de pensar isso, eu também o pensaria se me aparecesse pela frente uma história assim. Nós não somos desconfiados por natureza, mas por cultura – e nunca ninguém perdeu em desconfiar do vizinho. Razão tinha Kissinger, quando dizia que até os paranóicos têm inimigos. Peço-lhe apenas o benefício da dúvida. Peço-lhe? Imploro-lhe. Aqui onde me vê, estou de joelhos, implorando-lhe que acredite em mim. Isto não é uma história, isto não é ficção. Estou apenas, genuinamente, a tentar estabelecer contacto com alguém que exista do outro lado da página.

Estou a estender-lhe a mão. Por favor, considere a possibilidade de me estender a sua.

Só mais uma palavra. Não escreva a responder. Bem sei que se calhar está imune, mas nunca se sabe. Apareça, apenas. Eu saberei reconhecê-lo/a, e você também me reconhecerá com facilidade. Seremos os únicos – na praça, no jardim, na rua, no café, onde quer que nos encontremos – sentados pacatamente, com um sorriso nos lábios e um livro, aberto, na mão.


Mereça a moça que você tem.

chico.buarque

“Por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz e atrás dessa mulher mil homens, sempre tão gentis. Por isso, para o seu bem, ou tire ela da cabeça ou mereça a moça que você tem.”
―Chico Buarque

Francisco Buarque de Hollanda; 19 de junho de 1944 (70 anos), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.


A Mulher

A Mulher também a mim se mostra como falsidade
Mostra-se como princesa sem pressa
Que depressa passa de principiante acesa
A Mulher astuta de meia-idade

Também a mim, a Mulher, se mostra de forma especial
Se mostra como ninfa, guerreira e lutadora
Mostra como se finta uma guerra na hora
E me faz trocar socos com argumentação teatral

Essa Mulher é bem mais que Mulher
É Femme Fatale em toda a sua essência
É discreta embora aliciante

É a prosa divina de uma deusa qualquer
É a prova de vida de um cupido com demência
É Mulher, é Inferno, é Céu, petulante.

 

femme.fatale.noir


O Português prefere Sonhar.

Eu concordo com o Agostinho. o português não gosta de trabalhar
Ser de Portugal, por si só, já é um trabalho
É ter trabalho sem emprego, é ter casa e não ter lar
É sorrir sem se ser feliz, é não pedir e não ter o que dar
Ser português é não ter emprego mas ter que trabalhar.

Ser português é Sardinha, bacalhau e vinho
Ser português é mais que nacionalidade, religião
É o fervor das tardes de domingo a ver a águia e o leão
É fazer parte, ser a parte pequena e ficar à parte, sozinho

Ser português é ser NÃO.
Não devemos, não queremos, não podemos
Nunca ninguém foi, nunca ninguém é
Não obtemos, não temos, não dizemos
Nunca ninguém foi, nunca ninguém é
Não sabemos onde estaremos, o que teremos e o que faremos
Não vemos, não lemos nem sequer ouviremos uma réstia de SIM.

Simultaneamente, nem simples nem simpático
Apenas um pouco simplório com uma vontade simulada
Com uma simulação, que não é um Sim à ação
Apenas uma alusão a uma ilusão de uma sociedade que não percebeu que está acabada.

Inspirado em:
 O Português não Gosta de Trabalhar

“O português não gosta de trabalhar. Se há uma tecnologia que trabalhe por ele, ela que avance. Ele tem coisas mais interessantes para fazer como poeta, do que a trabalhar. (…) O português trabalhou e trabalhou e trabalha sempre que for preciso. O que têm feito os emigrantes pelo mundo? Aonde eles vão e é preciso trabalhar, eles trabalham. (…) O português, dentro de determinadas condições, se a vida lhe fosse inteiramente favorável, ele gostaria muito mais de contemplar e poetar do que trabalhar. Mas quando é levado a uma função em tem que trabalhar, ele trabalha.”

Agostinho da Silva, in ‘Entrevista’


O que é a mentira?

A mentira não passa de um bobo
Vestido com losangos de veludo em cor violeta
Um fantoche na mão com uma língua afiada
Nós somos fantoches que não valem nada
Nós somos fantoches esquecidos numa gaveta

A mentira é um bobo obscuro
Que nos faz rir às escuras das suas piadas
Das histórias tortas e mal contadas
Mal-amanhadas e tristemente inventadas
Que nos deixam atulhados nesse monturo

A mentira é um bobo impuro
Que nos envenena a cada sorriso
Que graceja da burrice em cada improviso
Histórias tão teatralmente ensaiadas
Mentira, bobo que esconjuro

A mentira é um bobo fatal
Que se ri quando nos vê a padecer
Que se regozija de nos ver sofrer
Que aguarda para nos ver morrer
Com nos abraça empunhando um punhal.

Preocupação falsa
A existir, será infinitesimal.

‘Fiquei magoado, não por me teres mentido, mas por não poder voltar a acreditar-te.’
Friedrich Nietzsche


O que é a mentira?

A mentira não passa de um bobo.
Vestido com losangos de veludo em cor violeta
Um fantoche na mão com uma língua afiada
Nós somos fantoches que não valem nada
Nós somos fantoches esquecidos numa gaveta

A mentira é um bobo obscuro
Que nos faz rir às escuras das suas piadas
Das histórias tortas e mal contadas
Mal-amanhadas e tristemente inventadas
Que nos deixam atulhados nesse monturo

A mentira é um bobo impuro
Que nos envenena a cada sorriso
Que graceja da burrice em cada improviso
Histórias tão teatralmente ensaiadas
Mentira, bobo que esconjuro

A mentira é um bobo fatal
Que se ri quando nos vê a padecer
Que se regozija de nos ver sofrer
Que aguarda para nos ver morrer
Com nos abraça empunhando um punhal.

Preocupação falsa
A existir, será infinitesimal.


Desconfia

Podes desconfiar

Desconfia, não te vou culpar

Desconfia, prometo não me queixar

Podes magoar, firmar, gritar

Desconfia, podes desconfiar

Desconfia, puxa uma cadeira para sentar

Desconfia

Desconfia, até antes de eu falar

Desconfia, do que faltar

Desconfia, do que falhar

Desconfia, isso não me vai fanar

Desconfia, isso não me vai fadar

Desconfia, até faiscar

Desconfia

Podes desconfiar

.

Podes desconfiar

Desconfia, prometo não desertar

Desconfia, embora me vá varar

Desconfia, que vá vadiar

Desconfia, que vá variar

Desconfia, de formas variadas

Desconfia, que podes

Desconfia

Podes desconfiar

.

Desconfia, como se não fosse interessar

Desconfia, como se te estivesses a aproveitar

Desconfia, como se eu fosse vulgar

Desconfia,

Podes desconfiar

Desconfia, como se isso te fosse salvar

Desconfia

Podes desconfiar

Desconfia, como se isso te fosse saciar

Desconfia

Podes desconfiar

.

Desconfia, não irei reciprocar

Desconfia

Podes desconfiar

Desconfia, não irei interpelar

Desconfia

Podes desconfiar

Desconfia, não irei questionar

Desconfia

Podes desconfiar

Desconfia, mesmo sem pestanejar

Desconfia

Podes desconfiar

.

Desconfia

Desconfia

Desconfie

Desconfie, foda-se!

Pode desconfiar

.